domingo, 23 de maio de 2010

Divagações sobre socialismo, liberalismo e democracia

Não faz muito tempo, um advogado lá do trabalho veio coversar comigo na copa. Enquanto estávamos lanchando ele disse que admirava o curso e tudo o mais, e que, para ele, a História tinha a função de impedir que as pessoas cometessem os mesmo erros do passado. Uma concepção bem batida e que eu discordo de uma maneira parcial. Pois bem, minha opinião acerca disto não importa agora, o que importa é que ele utilizou essa base para atacar o socialismo. Disse que não devíamos aplicar o socialismo, já que a História nos mostrou que ele fracassou. Opinião bem comum, que quase todo mundo tem. Opinião que, de fato, não se baseia em História, mas sim, em propaganda. Resultado de décadas e décadas de manipulações ideológicas. Aliás, isto faz parte de um grande problema na historiografia contemporânea: Como olhar para o passado recente sem ser dominado pelas paixões que tais acontecimenos tão próximos nos causam? E como desvendar o passado distante com a escassez de fontes?

Não tenho resposta a tal pergunta, mas certamente a História do Socialismo é extremamente controversa, manipulada, politizada, desprezada e, muitas vezes, vista apenas como uma contagem de mortos. Ou seja, é baseada em análises superficiais, pouco objetivas e bizarramente deturpadas. No "mainstream" historiográfico, ela é basicamente um julgamento capitalista-liberal, e não uma análise concreta do processo histórico de cada nação socialista. Já no "underground", há também as idealizações de esquerda, que procuram defender de todas as maneiras os regimes revolucionários do século passado. Porém há uma abertura muito maior a pontos de vistas diferentes e contra-paradigmáticos do que no "mainstream", onde se encontra a ditadura do paradigma totalitário e da contagem de mortos.

O "mainstream" é resultado direto da Guerra Fria. É o fim inexorável de uma política propagandística anti-democrática. É o filhote do controle ideológico do pensamento. E é um dos pontos que os os "democratas" do liberalismo mais criticavam nos regimes socialistas. Enfim, é o triunfo da ideologia sobre a objetividade do historiador.

Aí voltamos ao advogado. Ele baseia alguma parte de suas convicções políticas e de seus princípios individuais em uma deturpação histórica. De fato, em diferentes graus, todos somos assim. Porém, neste caso, o grau é perturbadoramente alto. E o mais grave de tudo isso, é que a grande maioria da população também segue este rumo. Muitos simpatizam com os ideais socialistas, mas recusam-se a defendê-los por causa do suposto fracasso do sistema. Clamam que não passavam de regimes totalitários, sanguinários, ineficientes, etc. E a base para afirmações tão graves não passa de um bombardeio ideológico incessante desde que se entendem por gente.

Por outro lado, militantes socialistas muitas vezes passam longe da objetividade também. O que, em minha opinião, é mais prejudicial ainda. Não falo dos que compartilham das propagandas capitalistas, estes enquadram-se, em larga medida, no que já foi dito antes. O pior que um militante socialista pode fazer é criar uma realidade idealizada das experiências passadas, elevando revolucionários a homens infalíveis e aos seus respectivos regimes como verdadeiros paraísos. Isto acaba por mascarar os erros do passado, que, na verdade, são essenciais para as tentativas futuras triunfarem. Além de criar um dogmatismo marxista no nível do liberal. Erro que leva a um mecanicismo teórico que desemboca no mecanicismo prático. Em outras palavras, a experiência socialista deixa de ser revolucionária, dinâmica, criativa, para se tornar em um regime puramente economicista, amarrado e, de certa forma conservador, já que passa a se basear em um dogma imutável e incontestável - assim como o deus mercado, cria-se o deus marxismo.

O que na verdade, foi o que os revisionistas kruschevistas fizeram na União Soviética. Impuseram sua visão "marxista" e abominaram qualquer outra coisa que não se encaixasse nela, taxando os defensores do velho modelo de "grupo anti-partido" ou de "tiranos". E porque isso aconteceu? Porque o Partido tornou-se mecânico, não mais revolucionário. Foi corrompido pelo espírito tzarista, pela centralização demasiada dos poderes nas mãos de primeiros secretários regionais, resultado indesejado do "Comunismo de Guerra" e da NEP. Stálin e seus camaradas não demoraram a perceber a degeneração do Partido, e a Constituição de 1936 buscou logo separar o Estado soviético do Partido. O que efetivamente não foi aprovado. Por fim, o Partido foi o berço do capitalismo e da destruição do socialismo soviético.

Logo, ao negar-se a analisar mais profundamente o processo histórico, busca-se apenas atacar qualquer crítica às experiências socialistas, cegando-se para a série de problemas que elas tiveram de enfrentar. Como a degeneração do Partido, por exemplo. Muitos preferiram ficar com as resoluções do PCUS, "o mais velho PC revolucionário do mundo", do que criticá-las, outros, criticaram, mas não puseram as críticas em prática. E isso é simplesmente uma afronta terrível ao bolchevismo e à auto-crítica marxista.

Alguns podem ler o que foi dito até agora e dizer que minha análise aproxima-se da análise anti-comunista do marxismo, aquela que transforma o marxismo em um seita religiosa. Em outras palavras, da análise que sustenta o paradigma totalitário, a de que no "socialismo real", a ideologia comunista torna-se um paradigma sagrado e que qualquer oposição a ela torna-se "heresia". Bom, de certa forma minha opinião até que se aproxima disto, mas de uma outra perspectiva. Boa parte dos modelos políticos da humanidade até hoje seguem este rumo, desde as antigas civilizações da Mesopotâmia até a Respublica Christiana e o capitalismo liberal. E não só modelos políticos, qualquer análise de nosso mundo está sujeita a este dogmatismo, inclusive a gloriosa ciência moderna. Isto porque somos incapazes de fazer uma auto-crítica decente de nós mesmos, além do que, por uma estranha razão, somos inclinados a ver o mundo através de esquemas simplificados e generalizados da realidade, sempre achando que nossas teorias são o real em si, e não um instrumento que nos ajuda a compreendê-lo.

À medida que entendermos que o conhecimento é um instrumento de compreensão do mundo, e não a realidade em si, não seremos tão arrogantes a ponto de acharmos que qualquer crítica é uma ofensa à verdade. O marxismo é um instrumento revolucionário poderosíssimo, capaz de oferecer uma visão mais completa da democracia e de abrir a mente de pessoas para o fato de que o capitalismo ainda está longe de ser democrático, apesar de que representa uma melhora significativa em relação a outros sistemas mais antigos. Porém o marxismo deve ser encarado como uma ciência maleável e progressista, e não como algo rígido, indiscutível e, portanto, conservador. E, ao meu ver, este é um problema pré-revisionista, mas que teve como seu ápice o revisionismo. Kruschev perpetuou um "leninismo" monolítico e forçou o movimento comunista a se ajoelhar perante ele, tendo como resposta a revolta de vários partidos em todo o mundo, como o PC Chinês, por exemplo. Gorbatchev forçou o "deus mercado" goela abaixo dos cidadãos soviéticos, tendo a cara de pau de fazê-lo em nome de Lênin e da "democracia".

Curiosamente, os liberais aplaudem tais momentos de imposições "divinas" da História Soviética. Enquanto que os momentos de constestação, de discussões inflamadas, de lutas políticas são basicamente taxados de "tirania" e deixados de lado. Para o "mainstream" historiográfico - e para o advogado - o erro foi ter contestado o modelo político, econômico e social vigente. Esse é o erro do passado. É basicamente o que um restaurador do século XIX pensaria sobre a Revolução Francesa. Porém tal idéia é mascarada por uma concepção estreita e dogmática do mundo e por uma crença infalível de que suas visões são realistas e não ideológicas. Esta é a prova cabal de que o que havia de revolucionário na burguesia e no capitalismo, já afundou há um bom tempo. O liberalismo esgotou-se, tornando-se um freio à democracia e não mais sua vanguarda.

Cabe aos socialistas superarem seus próprios dogmas - o fantasma do esquerdismo que Lênin já criticara há muito tempo atrás - e a propaganda ideológica burguesa, para que então possam libertar suas mentes para o próximo passo da batalha pela democracia: a extinção do deus mercado e do individualismo extremado.

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