terça-feira, 15 de março de 2011

O Calar das Vozes

Hoje enviarei um post diferente de todos os outros. Normalmente escrevo aqui minhas impressões pessoais, ou coloco artigos e entrevistas. E o conteúdo é sempre acerca da história do socialismo. Mas hoje vou mudar um pouco isso, vou postar um pequeno conto de minha autoria, cuja temática coincide um pouco com a do blog. Espero que gostem.

O Calar das Vozes


Tudo se movia rápido demais à sua volta. Tudo brilhava demais, fazia barulho demais. Ele se sentia sozinho em meio aquele mundo caótico e pecaminoso. Mortes? Cada vez mais banais. E se fossem de pobres ou moradores de rua eram uma bênção. Fome? Que isso? Só morrem de fome os vagabundos. Guerras? Tem que matar os bandidos e os terroristas mesmo. Bando de vermes que querem acabar com a gloriosa civilização ocidental.

Chamam isso de democracia. Mas onde estão as vozes contrárias? Aqui e ali, sendo cada vez mais sufocadas. As pessoas são bombardeadas desde pequeninas pelas propagandas ideológicas do sistema, todas mascaradas de verdade pela mídia. Esta que é cada vez mais concentrada nas mãos de poucas grandes corporações. São “notícias”, veiculadas pela imprensa “livre” e por jornalistas “não-ideológicos”. O que eles espalham é a verdade pura e simples. Ao contrário dos esquerdistas que infectam o mundo com suas ideologias.

Bem, não infectam mais. A esquerda já não passa de uma ala um pouco menos radical da direita. Querem um capitalismo “mais humano”. Nega-se ou apaga-se da memória toda a história de lutas e vitórias dos movimentos progressistas e revolucionários. Não se produz e não se financia pesquisas que analisem esta história, estes benefícios ficam a cargo apenas daquela escolazinha fechada de acadêmicos que ficam contabilizando todas as mortes em regimes socialistas e colocando-as sob as costas de sua ideologia. Todos os estudos sérios já feitos sobre este passado da humanidade são abandonados e apagados da memória coletiva, já que eles vão de encontro à “não-ideologia” dos regimes modernos.

Ele parou, angustiado. Sentindo-se com um pária, como um ser de outro mundo, enquanto observava aqueles gigantescos telões e letreiros coloridos para todos os lados. Jamais na história da humanidade surgira métodos tão eficientes de controle da população. Isto é bonito, isto é feio, isto é certo, isto é errado, isto é ético, isto não, isto é ditadura, isto não. Para onde se olha há o controle. Um controle de novo tipo, muito mais perigoso e aterrador do que qualquer outro já utilizado. Não é mais tanto pelo terror, pela força, pela subjugação, isto tornou-se secundário já há alguns anos. O controle do século XXI é sobre a mente dos homens, sobre seus sentimentos, sobre sua... Alma.

E como todas as atrocidades que a humanidade já cometeu, esta nova situação surgiu da ingenuidade, da falta de visão, da irracionalidade. Não há uma mão maligna por trás de tudo isso como muitos já gostaram de propagar. Não há um “Grande Irmão”. Não há um centro de poder, nada disso. Os erros de nossa débil espécie se repetem, sempre se repetem. Cada um de nós é um “Grande Irmão”, cada um de nós é responsável por nosso mundo, nossa civilização. A história não é aleatória, não tem vontade própria, muito menos ela se resume às ações dos “Grandes Homens”. Eles não passam de pequenas partes de um todo, de minúsculas polias de uma gigantesca engrenagem chamada sociedade. E esta engrenagem... Esta engrenagem nunca recebeu o óleo necessário para seu funcionamento harmonioso. Nunca.

Isto porque cada polia sempre quer ter um papel maior que a outra, sempre quer se sobrepor a outra. Elas tendem a monopolizar a maior parte do óleo para que elas funcionem melhor em detrimento das outras. Se acham superiores por algum motivo. Talvez seus dentes sejam mais compridos, ou mais grossos, pode ser que seu diâmetro seja maior ou que ela se encontre em uma parte mais alta, quem sabe mais complexa, da engrenagem. Então, por causa deste sentimento mesquinho e primitivo, elas comprometem todo o funcionamento do complexo mecanismo social. Querem se mover mais rápido, querem ditar o ritmo de todas as outras, ou simplesmente querem danificar qualquer outra polia que possa ameaçar sua posição.

Este tipo de atitude pode até gerar admiração por parte de outras polias, já que estes mecanismos “superiores” parecem trazer certo bem, talvez um funcionamento mais rápido. No entanto, o que as polias nunca aprendem é que, ignorar o funcionamento do mecanismo como um todo, no futuro, gerará desgraça. As polias da base do sistema, que são humilhadas e subjugadas devido à ânsia por mais óleo de suas companheiras “superiores”, acabam ficando sem lubrificação um dia. Seus dentes começam a quebrar, a enferrujar. Muitas perecem por causa disso. E o mecanismo como um todo começa a entrar em descompasso. E então ele quebra. E as polias lá de cima, que se acham tão importantes e superiores às outras, encontram exatamente o mesmo fim. Pois, querendo ou não, elas fazem parte de um todo. E só existem por causa disso.

“Civilizações vão e vem, mas os homens nunca aprendem...” – murmurou o pária social em um tom melancólico.

Os erros se repetem. Isto não saía da mente dele. Não só os erros das polias de cima, elas não são a mão maligna por trás do sistema. O que os separa da maioria das polias do resto do mecanismo é que elas tiveram sucesso estrondoso em se sobrepor às demais, mas este tipo de comportamento se repete até a base. O mecanismo é inseparável de uma peça individual. O que uma faz, outras tendem a fazer. Seja por exemplo, por vingança, por revolta ou qualquer outra razão. A razão não importa, o cerne da questão é que a civilização humana desde muito tempo se baseou em uma luta encarniçada de polias individuais por mais óleo para elas mesmas em detrimento das outras.

O homem recostou-se na parede de um beco escuro. E sua mente funcionava em uma efervescência cada vez maior.

E todo este comportamento das polias, ele seguiu raciocinando, não dependia de uma natureza ideal e homogênea delas. Não há lugar para determinismos no mundo. Uma polia não existe sem a outra, isto é a base do mecanismo social: a interdependência. Uma engrenagem só gira porque há outra girando e assim por diante. Se uma delas passa a concentrar mais lubrificante que a outra, a tendência é que todas passem a lutar por isto, mesmo que inconscientemente. O que isso gera? Um ciclo. Pois as engrenagens lutam, lutam, lutam até que o mecanismo é desregulado e para de funcionar. As “vitoriosas” então percebem que de nada adianta concentrar todo o óleo, pois elas não têm condições de mover todo o gigantesco mecanismo sozinhas. Então um pouco de óleo é despejado paras as “perdedoras”, que começam a se movimentar novamente em busca de mais óleo e em busca de vingança. Algumas delas eventualmente se tornam “vencedoras” e passam a concentrar todo o lubrificante nelas. O sistema desmorona novamente. E isto segue indefinidamente, mas não eternamente.

“É possível quebrar isso, é possível!” – exclamou o pária, em um raro momento de otimismo.

Mas apenas em momentos de crise, quando tudo entra em colapso. O óleo deve ser despejado igualmente para todas, para que haja harmonia no funcionamento. E um mecanismo harmônico gera solidariedade e cooperação entre suas peças, pois elas passam a perceber que trabalhar em conjunto é muito mais eficiente do que sobre a ruína dos outros. As coisas podem não seguir da maneira que se espera no começo, certamente polias individuais com grande concentração de lubrificante podem atingir velocidades estonteantes e criarem uma certa sensação de progresso. Uma falsa sensação. Pois uma hora todo o mecanismo sucumbirá por causa disso. No entanto, se todas cooperarem persistentemente por um bom período de tempo, o mecanismo começará a funcionar melhor, a velocidade aumentará exponencialmente e todo o sistema chegará ao máximo de sua capacidade com a máxima dedicação de cada uma de suas engrenagens.

“O problema é que o mecanismo funciona de maneira incorreta há tanto tempo que as polias acham que não há outra maneira, que esta é a única, é a verdadeira, é a correta.” – sussurrou o homem, enquanto se aprofundava ainda mais na escuridão do beco. Sirenes podiam ser ouvidas ao longe, ecoando nas ruas da cidade. “Assim se formou o dogma do ‘livre mercado’. E dogmas geram prisões. E prisões geram conformismo, pelo menos na maioria das pessoas. Conformismo gera conservadorismo. Conservadorismo gera estagnação.”

Uma viatura passou velozmente em frente ao beco. O homem pulou atrás de uma lixeira.

“Estagnação.” – repetiu o pária. “As pessoas se prendem a um único modo de ver o mundo e não conseguem sair dele. Por se sentirem ameaçadas ao ver o que acreditam ruir, propõem reformas, mas elas nunca vão ao cerne da questão. Jogam um oleozinho para os menos favorecidos e as coisas voltam a funcionar da velha maneira truncada e deficiente. No entanto, em sua essência, o dogma não cai. E o ciclo impiedosamente voltará a repetir-se. Será esta a sina da humanidade?”

Um estridente som de pneus freando explodiu nos ouvidos do homem. Ele engoliu em seco. Agora a ré fora engatada. As luzes da viatura aproximavam-se cada vez mais.

“Creio que sim...” – refletiu o homem, desconsoladamente. “Se depois de tantas trágicas repetições na história não aprendemos como espécie, como organismo coletivo, quando aprenderemos?”

O carro então parou em frente ao beco. Uma luz forte e esbranquiçada luz iluminou tudo à volta do pária. Ele se espremeu atrás da lixeira. Sentindo a terrível dor de que mais uma voz contrária ao dogma seria silenciada. Que mais uma vez, o ciclo se repetiria.

Passos se aproximaram vagarosamente. Não havia pressa. Não havia saída também. A figura altiva de um oficial de polícia dominou o campo de visão do homem. Agora, sem chances de escapar novamente, ele apenas levantou-se orgulhosamente. Peito estufado, feições duras, punhos cerrados e medo subjugado pela razão. Se seu fim estava próximo, que enfrentasse seu fim com honra, para que pelo menos seu exemplo servisse para os poucos lutadores da liberdade que ainda restavam...

Não houve qualquer troca de palavras, nem qualquer tentativa de prisão. Apenas um estrondo altíssimo. E o senso de dever cumprido.

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