segunda-feira, 4 de outubro de 2010

União Soviética, 1932 (O dia-a-dia no país dos Sovietes) Parte I


Sala de espera de um hospital em Moscou

Em plena "ditadura stalinista", o britânico Sir Arthur Newsholme foi à União Soviética inspecionar o sistema de saúde soviético para escrever seu livro, intitulado "Red Medicine". Durante cerca de um mês e meio ele e sua equipe desbravaram o enorme território vermelho, anotando suas impressões. Newsholme era um médico renomado na Inglaterra, um dos pioneiros no estudo e na implantação de políticas de saúde pública no Ocidente. Não encontrei qualquer traço de simpatias ao comunismo em pequenas biografias que procurei na internet, muito menos em seus relatos. No entanto, ele me pareceu estranhamente honesto para um ocidental e seus comentários são muito sóbrios em relação à vida e ao regime soviético, sem jamais espalhar boatos sobre escravidão ou sobre a "maldade" de Stálin e de outros líderes comunistas. É uma das poucas pessoas ao longo do século XX que detém o mínimo de objetividade científica e não visa imputar sua visão de mundo aos leitores.

Sua pesquisa serviu como base para a criação de políticas de saúde pública mais eficientes no ocidente, principalmente na Grã-Bretanha, uma das "pequenas" dívidas que o capitalismo tem com o comunismo. Porém, não tenho a menor pretensão de falar em minúcias sobre a medicina soviética. O que me interessa na obra de Sir Newsholme são suas observações acerca da vida na URSS, numa época em que, de acordo com a História Oficial, os soviéticos viviam sob a mais terrível e implacável das ditaduras totalitárias.

Na terceira parte de "Red Medicine", intitulada "Moscow and Leningrad", Sir Newshome fala um pouco de suas impressões sobre Moscou primeiro e, depois, sobre Leningrado. Uma das coisas que mais chama a atenção é a felicidade e a esperança estampadas nas faces dos moscovitas, desde as crianças aos mais velhos. O britânico diz que para todos os lados da URSS ele ouvia as pessoas cantando e via-as sorrindo. Não havia aquela atmosfera cinzenta de medo e terror tanto pregada por aí, o que corrobora com os estudos do historiador Robert Thurston em sua obra "Life and Terror in Stalin's Russia". Não havia aquele clima de paranóia e intrigas entre a população, clima supostamente criado pela perseguição violenta da polícia política soviética contra qualquer pessoa que discordasse minimamente do sistema soviético.

Ele segue falando sobre como a cidade era extremamente movimentada e como a população vinha crescendo de maneira espantosa nos últimos anos. Resultado disso foi um grande problema de habitação. Ele diz que apesar dos enormes blocos novos de apartamento que vinham sendo construídos, muitas famílias ainda tinham que viver juntas e apertadas, além de haver na cidade uma série de dormitórios públicos para abrigar os desabrigados. Além disso, era visível um "boom" no setor de construções, com novas fábricas, clubes para trabalhadores, parques de lazer, escolas, prédios comerciais, entre outras coisas.

Outro ponto interessantíssimo que é abordado é o fato de que a fome era discutida abertamente pela população, o que mostra que o governo soviético não escondia seus podres do povo como é normalmente dito por aí. Mas que fome seria essa? O próprio Newsholme explica, demonstrando um conhecimento profundo acerca da União Soviética de sua época, algo extremamente incomum para um ocidental. Ele diz que a URSS parecia não ter se recuperado ainda da destruição dos meios de produção agrícolas (basicamente cavalos, gados na época) promovidas pelos kulaks durante a coletivização de terras. Estima-se que a resistência desta última classe czarista russa tenha resultado em uma destruição de cerca de 50% dos meios de produção agrícola, sem contar que no início dos anos 30, a URSS passou pela pior seca dos últimos tempos. Esta combinação de fatores resultou em um triste e terrível período de fome, mas que, felizmente, foi contornado em cerca de dois anos.

Sir Newsholme descreve filas para se conseguir comida em açougues e outras lojas de alimentos. Ele disse que o que mais faltava era carne boa e leite. Então ele fala sobre grandes cozinhas comunais pela cidade, onde a refeição era vendida por 60 kopecks (ou cerca de 30 centavos de dólar), e sobre as refeições que eram oferecidas nas fábricas também. Duas interessantes formas de combate à fome.

Um dos pontos mais importantes para o dia-a-dia dos soviéticos era o Parque de Cultura e Descanso. Onde as pessoas se reuniam para o lazer e para estreitar suas relações pessoais. Havia de tudo por lá, danças folclóricas e populares, cantorias, jogos e brincadeiras para crianças, natação, remo, etc. O britânico informa também que, de acordo com a filosofia soviética, parques como este eram importantes para demonstrar o valor de atividades de socialização.

Outra situação que bate de frente contra o paradigma totalitário é o filme visto por Sir Newsholme em um cinema soviético, intitulado "A Estrada para a Vida". Baseado nos príncipios do Realismo Socialista, o filme é sobre problemas da realidade soviética, mostrando-a nua e crua, sem censuras. O normal de um governo totalitário é esconder seus podres, filmes como este deveriam ser prontamente proibidos por um governo que visa mostrar que seu país é um paraíso, já que ele aborda o problema da criminalidade juvenil. O filme dramatiza a necessidade da educação de qualidade para crianças de rua para prevenir que elas se tornem criminosas. Sim, havia crianças de rua e mendigos nesta época na URSS, apesar de que Sir Newsholme disse que era em bem menor quantidade que na Europa em geral. Agora imaginem um filme de Joseph Goebbels e Leni Riefenstahl acerca de um problema tão contrangedor para um governo como este. Seria possível? Jamais o Ministério da Propaganda nazista permitiria que algo assim fosse produzido.

A vida soviética era marcada também pela grande presença de eventos culturais. Teatros e óperas eram tomados por pessoas. Operários e camponeses lotavam lugares que no ocidente eram tomados apenas por nobres e burgueses. E Sir Newsholme descreve como os soviéticos apreciavam bastante tais espetáculos. Isto reflete a educação e a cultura cada vez mais elevadas das massas soviéticas que, há apenas duas décadas atrás viviam no obscurantismo, na miséria e na completa ignorância.

Neste primeiro relato de impressões sobre Moscou, Sir Newsholme trata de uma última questão que julgo de grande importância: o tratamento de criminosos. Ele visita uma comuna de trabalho para reabilitação de prisioneiros chamada Bolshevo, a cerca de 50 quilômetros de Moscou. Ela foi construída para pessoas que cometeram pequenos crimes como roubo e incêndio culposo. Havia cerca de 2.200 pessoas vivendo nesta "prisão". O interessante é que as famílias dos criminosos vão para lá também e o local é como uma pequena vila. Tem escola, hospital, clínica, loja de cooperativas e apartamentos de habitação. Os criminosos trabalham na criação de artigos desportivos, além do plantio e da pecuária para abastecer as necessidades da comunidade. Esta comuna é auto-governada pelos prisioneiros, os quais foram escolhidos por um tal Comitê de Distribuição entre vários condenados em prisões comuns. E é interessante que ela pode ser deixada por livre espontânea vontade. Não há guardas para impedir isso.

O objetivo é reduzir ao máximo o encarceramento de criminosos. Além de torná-los mais produtivos. Até onde eu sei é um método utilizado apenas para crimes de pequena relevância. Crimes mais terríveis como assassinato e desvio de dinheiro público são normalmente punidos nos campos de trabalho de maior segurança. Locais onde os criminosos ajudam a produção agrícola ou a construção de ferrovias e vilas no interior da nação, entre outros trabalhos. É importante frisar que onde o trabalho é para todos, o problema é ficar sem trabalhar. Portanto a população em prisões comuns sempre foi pequena, já que lá as pessoas ficavam improdutivas, vivendo do trabalho alheio - coisa terrível para o socialismo.

Nos próximos post buscarei apresentar mais aspectos da vida soviética nos anos 30. Até lá.

3 comentários:

  1. Parabéns pelo texto. Fiquei muito feliz em conhecer essa nova fonte, me lembrou o livro Viagem do Graciliano Ramos, obrigada!

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  2. Em Cuba também nada é escondido da população, eles falam abertamente na televisão sobre as dificuldades de abastecimento, e a gente vê reportagens aqui no Brasil descrevendo o contrário, numa manobra patética de mal-informar o povo brasileiro. Uma pena que sejamos, ainda, quintal do imperialismo. A mídia, então, é só composta pela mais podre elite econômica brasileira, talvez a mais bagaceira do mundo.

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